Sou pardo? Autodeclaração é um processo identitário

Luana Daltro
6 min readMay 3, 2020

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Fonte: Educação CMMO

Uma das perguntas que sempre chega no meu instagram (@ludaltro_) é sobre autodeclaração. A principal dúvida que cerca as pessoas é: “sou claro demais pra ser negro, mas escuro demais pra ser branco. O que eu sou? Eu sou pardo?”. Eu sempre fico sem argumentos, por que quem sou eu para dizer como uma pessoa deve se autodeclarar, não é mesmo. Quando acontece, busco tranquilizar e mostrar que é uma dúvida que cerca muitas pessoas. E, que em muitos casos essas pessoas têm um papel importantíssimo na luta antirracista porque transitam entre grupos étnicos. Mas, eu sei que não é suficiente, porque é uma resposta sobre identidade.

Sempre tive dúvidas sobre fazer ou não este conteúdo, pois é um lugar que eu não vivencio hoje, porém, por ser filha de uma mãe branca e um pai negro, aceitava ser chamada de morena na minha infância e adolescência, já que tenho um tom de pele negro claro e ser moreno é visto como mais “aceitável”do que ser negro. Percebam o quanto esse lugar também é de privilégio — ter o direito à escolha. Então, pensei que se um dia tive dúvidas sobre a minha autodeclaração, era necessário discutir sobre isso, pois fala sobre a a nossa identidade, e quando a gente consegue se colocar nesse lugar de empatia, parece que a escolha fica mais fácil. Sim, foi uma longa introdução, mas quero te convidar a refletir sobre esse tema comigo. Bora?

A ideologia do branqueamento: o começo da história

Quem costuma ler os meus textos sabe que eu gosto de contextualização, porque o presente é resultado de um passado e se hoje temos dificuldades de entendimento sobre a nossa identidade étnico-racial é consequência de um passado escravocrata. Por isso, devemos entender sua origem que advém da construção da ideologia do branqueamento, já falei sobre o assunto aqui no Medium.

Dando uma rápida explicação, no século XIX e meados do século XX, a elite brasileira estruturou a “ideologia do branqueamento” baseada na premissa de que era necessário embranquecer o país, uma vez que a população era majoritariamente negra, tendo em vista à mão de obra escravizada. Assim, começou-se o processo de miscigenação do Brasil, planejado e instaurado, como forma de alienação da identidade de negros e índios, os quais acreditavam que com essa medida, seus filhos seriam incluídos na sociedade, pois sabemos que eles não eram considerados integrantes da população.

Para André (2008), a miscigenação tornou-se eficaz, pois desenvolveu três formas de ação:

  • A violência sexual praticada pelos senhores de escravos em mulheres negras e indígenas.
  • Casamentos fora do religioso.
  • À chegada dos imigrantes no país. O governo adotou uma política externa no regime colonial, que facilitava a vinda de imigrantes de todos os países do mundo para o Brasil, oferecendo a possibilidade de trabalho e moradia. Mas, a verdade é que, novamente, o objetivo era o clareamento assim sendo mascarada uma política eugenista.

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A miscigenação foi um processo de êxito do governo, pois, atualmente somos considerados um país miscigenado e temos orgulho dessa nação. Mas, quando analisamos profundamente, entendemos que a raíz é problemática, pois traz à tona o preconceito racial entre os diferentes grupos étnicos-raciais que existem no Brasil. Além disso, conseguimos entender a confusão de autodeclaração presente na sociedade.

Os fenótipos na construção de identidade

O Brasil não conseguiu ter um processo de segregação racial como o ocorrido, por exemplo, nos Estados Unidos, mesmo assim o discurso de supremacia racial reproduzido por pessoas brancas à época, ganha sustentação não somente pelo genótipo, mas pelo fenótipo das pessoas. Com a presença de diferentes nacionalidades na construção do país, os fenótipos europeus ganham força, de modo que, atualmente, descendentes de famílias europeias sentem-se mais identificados com essa origem do que com a sua nacionalidade, porque cresceram numa cultura que valorizava essas características, além de serem pessoas com traços europeus marcados, principalmente, italianos e alemães, com a pele bem branca, cabelos loiros e olhos azuis, além de serem fenótipos que não representam a característica majoritária da população brasileira.

As pessoas pretas e pardas são a maioria da população brasileira. Segundo dados do IBGE, o número de pessoas que se declara como pardo é de 46,5% somado ao número de pessoas que se declara como preto, 9,3%, temos 55% da população brasileira. Nós tivemos um aumento de pessoas se declarando como pretas e pardas no último censo, um grande avanço na construção de identidade e aceite das características. Esses dados reforçam o quanto trabalhar com representatividade e associações positivas ao longo dos anos gera efeitos e mudança na representação social das pessoas. No entanto, sabemos que o número de pessoas que se declara como preta poderia ser maior se ainda não tivéssemos um racismo tão onipresente e suas manifestações sendo reproduzidas com tanta força no âmbito social.

O ser Pardo

A miscigenação causou uma mistura de fenótipos entre negros, brancos e índios. Logo, quando você tem traços fenótipos marcantes de um grupo étnico, se torna mais fácil se identificar com este grupo e se autodeclarar. No entanto, quando seus traços são híbridos, isto é, uma mistura entre grupos, a autodeclaração se torna um processo difícil, gerando um limbo sobre a sua existência e origem.

A pessoa parda é vista como aquela que tem ascendência étnica de mais de um grupo, por exemplo, como descendente de negros com brancos, ou descendentes de negros com índios, ou descendentes de índios com brancos, por isso, são vistos como mestiços. Mas, você deve se perguntar, mas se somos um país miscigenado, qual é o tabu da mestiçagem e ser visto assim? A origem, novamente, vem da construção da miscigenação. Existiam teorias que viam como negativa a mistura entre raças, porque cada uma estaria em um grau de desenvolvimento diferente, logo, teríamos uma nação incapacitada geneticamente, além de ser uma sociedade inferior, tendo em vista que a teoria da supremacia racial, considerava que pessoas negras e indígenas tinham genes inferiores ao de pessoas brancas. O racismo da dita ciência da época se manifestando. O reflexo disso é que crianças nascidas destes cruzamos étnicos eram chamados de mestiços, renegados e vistos como pessoas de sangue ruim. Atualmente, a consequência é a dificuldade de pessoas pardas se autodeclararem e entenderem que são um grupo étnico na sociedade. Aqui, vai meu recado: Não há problema algum em se autodeclarar como pardo. É um reconhecimento da sua identidade e valorização das suas características. Mas, cabe destacar que há um processo do movimento negro para inclusão de pessoas negras e pardas como pretas, porque sabemos que para pessoas brancas e a polícia não há distinção. Esse processo de alienação das identidades causado pelo branqueamento da população gera uma dificuldade de aceitação perante pessoas negras da sua negritude. É um processo de valorização e aceitação também.

E vamos de treta…

Se não bastasse a dificuldade de entendimento e construção da identidade parda, existe uma grande treta sobre a afroconveniência. Ou seja, pessoas pardas que utilizam dessa fácil transição entre grupos para benefício próprio. Um exemplo clássico é a cantora Anitta, que recorrentemente, faz clipes usando tranças, escurecendo sua pele para se parecer com uma pessoa negra.

Fonte: Metropolitana FM

Atitudes assim geram desconfiança sobre este grupo étnico, porque ser pardo te dá o privilégio da escolha, isto é, o que eu quero ser? Dando assim a permissividade de estar ora entre grupos brancos, ora em grupos pretos. Situação que não acontece com pessoas negras e indígenas, pois suas características não podem ser modificadas ou ocultadas. Mas, fiquem tranquilos porque a discussão entre escalas é presente no Brasil também devido ao Colorismo, que explica como a discriminação pela cor da pele sofre influência da tonalidade, ou seja, quanto maior a pigmentação da pele, mais exclusão e discriminação uma pessoa sofrerá na sociedade. Desta forma, conseguimos entender porque o racismo vai contra pessoas racializadas, pessoas negras, indígenas e pardas sofrem com a discriminação racial, porque são sujeitos outros, ou seja, não são vistos, em muitos casos, como pertencentes ao grupo branco.

Cabe também dizer que pessoas negras de pele clara precisam assumir sua identidade. Não é porque tem maior permissividade na sociedade, que podem ocultar sua origem étnica. Compreendo que é difícil o processo identitário para pessoas racializadas, mas acredito ser importante e necessário você fazer essa reflexão.

Espero que vocês tenham gostado do conteúdo, foi longo, mas com um sentimento de dever cumprido. Se você gostou, por favor, aplauda ali embaixo, pois ajuda no alcance do texto :)

Para entender mais sobre o que é ser pardo, indico essa leitura: https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv/article/view/31930/18982

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Referência

ANDRÉ, Maria da Consolação. O ser negro: a construção da subjetividade em afrobrasileiros. Brasília: LGE, 2008.

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222009000100006

https://www.diferenca.com/preto-pardo-e-negro/amp/

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/22/ibge-em-todas-as-regioes-mais-brasileiros-se-declaram-pretos.htm?cmpid=copiaecola

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Written by Luana Daltro

Relações-Públicas e Entusiasta da negritude. ig: @ludaltro_

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