Solidão da mulher negra

Luana Daltro
6 min readJul 23, 2019

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Foto/Reprodução: Blogueiras Negras

Ser uma mulher negra numa sociedade racista, que utiliza mecanismos institucionais para estruturar a reprodução do seu sistema, é doloroso. Afinal, as opressões sofridas são sentidas duplamente, enquanto gênero (mulher) e raça (negra) na sociedade. Aqui, faço um recorte para o meu lugar de fala — mulher negra de pele clara, que não conseguirá alcançar as dores que as mulheres negras de pele retinta sentem, mas espero que possa abrir um espaço de troca.

Falar sobre mulher negra, é falar sobre mim, e por vezes, torna-se difícil escrever sobre vivências e experiências. Porém, tenho presenciado cada vez mais o distanciamento de mulheres não-negras sobre questões raciais, não compreendendo seus privilégios, não entendendo ou agindo como se esta pauta não importasse. Reflitam. Mas e os homens brancos? Os homens brancos são colonizadores e opressores desde que pisamos nesta terra, o mínimo que se espera é consciência racial, de gênero e de classe, mas toquei no ponto das mulheres, porque falam em sororidade e feminismo plural, mas cadê?

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Além disso, sabe-se que a mulher negra sempre foi preterida nas relações, uma vez que o padrão de beleza não é negro. O pior é a sensação de culpa, como se nós (mulheres negras) não merecêssemos o lugar do afeto. Estes são alguns dos motivos que me fizeram abordar um assunto tão caro e profundo: a solidão da mulher negra.

Para iniciar escurecendo o pensamento,

Por que falar em solidão da mulher negra e não somente da mulher?

Porque é cada vez mais importante que a sociedade perceba que nós não somos iguais, somos seres heterogêneos, e cada grupo social traz consigo dores e anseios que precisam ser recortados e discutidos profundamente. Logo, mulheres negras e mulheres brancas têm demandas diferentes e, por sua vez, a solidão da mulher negra elucida questões que nunca foram e serão sentidas, por exemplo, em mulheres brancas.

A questão primordial ao falar em solidão da mulher negra é entender como ela se constitui. Esta construção não é somente afetiva, como normalmente as discussões se detém, é um sentimento recorrente vivenciado em diferentes esferas ao longo da vida, e são sobre estes momentos que eu desejo falar.

1. Identidade: quem sou eu?

A infância é um momento de descobertas, sonhos e desejos. Ou melhor, deveria ser. Para a criança negra, o racismo se apresenta nesta fase da vida, percebemos que somos um sujeito outro, o diferente. Essa sensação é construída pelo contexto social e reproduzida nos grupos aos quais estamos inseridos, como família, amigos e escola. Neste momento da vida, acontece a descoberta, o olhar-se no espelho e ver o seu reflexo. Quem sou eu? Gritaram-me negro/a, mas o que é ser negro/a?

Aprendemos rapidamente, que ser negro é sinônimo de algo ruim. Esse é o início do processo de negação das nossas características físicas, que causam tanto sofrimento. A base é a fragmentação identitária, não conseguimos construir uma identidade negra positiva, buscamos a referência na branquitude, valorizando as características eurocêntricas. Um processo penoso, uma solidão identitária que nos aprisiona.

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Toda menina dança?

Na minha infância, as meninas negras se olhavam no espelho e não conseguiam se sentir bonitas; eu não conseguia ver a beleza que a minha mãe dizia ver. Cabelos vistos como ruins e traços deslocados do conceito de beleza padrão, a solução encontrada era alisar os cabelos — “pente quente no fogão” — é uma lembrança que muitas meninas negras têm da sua infância, fazer um relaxamento ou o clássico henê, são vivências passadas pelas mulheres negras de geração para geração como forma de “moldar” os cabelos.

Foto/Reprodução: Cores e Botas, documentário.

Reproduzimos os costumes das mulheres negras ao nosso redor, e torna-se difícil quebrar esta lógica. Entretanto, cabe ressaltar, que os comportamentos desempenhados condiziam com as imposições das épocas. Porém, sempre houve resistência. Na década de 60, tornou-se emblema o “corpo assumido” (LODY, 2004), o qual buscava enaltecer a beleza negra como sinal diacrítico de orgulho identitário e assumir o cabelo black power. Assim, segundo o autor, percebe-se a estética auxiliando os movimentos negros para fortalecer a naturalização do cabelo como ato político.

Todo o processo é silencioso, solitário, não conseguimos expressar o quanto nos afeta enquanto crianças. Ao chegar na vida adulta, entendemos o quanto estes processos identitários nos moldaram, construíram mulheres emocionalmente fragilizadas, que duvidam da sua beleza, de sua capacidade e que podem o que quiserem.

Essa sensação é cascateada para as relações amorosas, e aqui, se torna nítido os danos instaurados.

2. Afeto: eu mereço?

Normalmente, as famílias negras tem um núcleo matriarcal forte, avós, mães, tias que criaram uma rede de apoio e solidariedade se doando ao máximo para que seus familiares tivessem melhores condições de vida. Crescemos vendo a força destas mulheres e nos questionando: por que estão sempre sós? será que teremos os mesmos destinos?

Na minha adolescência, sempre tive dificuldade em me sentir bonita, porque eu não era o padrão belo de mulher negra, ou, como já disse Nátaly Neri, fui a mulata que nunca chegou. O resultado foi uma baixa autoestima e uma insegurança aflorada, que me fazia questionar se seria amada, não somente porque eu não me achava bonita, mas por ser uma menina negra, e infelizmente, ser a segunda, terceira ou nunca ser a opção. A também conhecida friendzone, né, meu bem?

Esses dias vi um tuite que dizia: “O Dodô (Pixote) sempre foi bonito ou o racismo nos impediu que víssemos a beleza dele?”

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Àquela referência positiva no branco, também é vivenciada nas relações afetivas. Homens negros procuram em mulheres brancas o status de ascensão social e, ao mesmo tempo, a equiparação com o homem branco. Essa disputa não é consciente, assim como tornar-se negro é um processo, se desvincular do padrão afetivo da branquitude é árduo. O resultado é uma solidão afetiva da mulher negra, um laço de afeto duvidoso. Meu desejo é que possamos nos libertar, desenvolver o autocuidado e aprender que o amor pode transformar.

3. Intelectualidade: sou capaz?

Enquanto leio a biografia da Michele Obama, encontro semelhanças, compartilho das suas dores e reflito. Independente da classe social, a fragilidade que o racismo nos desperta é notável. Capítulo vai, capítulo vem, eis que surge a dúvida de Michelle: “será que tenho capacidade?”, referindo-se à sua intelectualidade, um questionamento tão presente na minha vida, e que me acompanhou da escola à universidade. É um pensamento solitário, pois quanto mais você avança nos estudos, a presença de negros e negras se torna ínfima. Você conquista lugares, mas é o único da sua turma ou um dos poucos da sua família que chegou neste espaço. A faculdade pode ser um lugar maravilhoso, mas para as pessoas negras também pode e se torna um lugar nocivo, pessoas que questionam e duvidam da sua capacidade. Como se afirmar neste processo?

Enquanto, nós (mulheres negras) atingimos lugares de poder, os homens negros ainda são poucos nestes ambientes. Uma situação que é fruto de espaços que não os incentivam e os veem como objetos laboral.

O crescimento profissional traz consigo o peso de ocupar não-lugares, e continuar vendo mulheres negras ocupando cargos de subemprego. A representatividade se torna mais questionável, você percebe que será a única ou uma das poucas em cargos que saem do comum, você saiu fora da curva, e encontrou um lugar solitário. É esta solução?

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Cansa. Destrói. Ser a única. Se sentir sozinha. A solidão da mulher negra precisa ser debatida e refletida sob o viés da luta antirracista, somente assim, avançaremos em questões estruturais.

Sugestões de filmes/documentários/ textos sobre transição e identidade:

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Referências:

LODY, Raul Giovanni da Motta. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: SENAC, 2004.

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Written by Luana Daltro

Relações-Públicas e Entusiasta da negritude. ig: @ludaltro_

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