Cotas Raciais: Ser cotista racial numa universidade federal
Esta história começa antes da federal, ela tem um início na minha infância. Sempre acreditei que precisava ter as melhores notas, ser uma aluna excelente e o mais importante: nunca ficar em recuperação. Minha mãe nunca teve problemas comigo quando o assunto era estudo, o único dilema sempre foi a conversa, e como gostava, né. Não foi à toa que fiz teatro quando criança e escolhi ser Comunicadora. O autodesempenho escolar vinha dos meus pais, mas, eu não entendia exatamente porque, mesmo quando eles não reforçavam o discurso, eu me sentia pressionada para demonstrar o melhor.
Hoje, eu já sei. Aquela angústia tinha nome e se apresentava como racismo e bullying. E não, este texto não vai ser sobre superação, ou uma forma de justificar que essas ações me formaram enquanto sujeito, ao contrário, acredito que justamente por isto, tive tantos danos psicológicos, considerando minha autoestima e formação identitária. A inteligência era a minha forma de distinção e uma válvula de escape para enfrentar as situações. Mas, um pensamento sempre me acompanhava: por que não consigo ser boa o bastante? E que bastante era esse? Era uma crença limitante que eu estabeleci. Eu duvidava da minha capacidade intelectual e isso contribuiu para que eu nunca cogitasse a possibilidade de entrar numa federal.
Eu moro em Porto Alegre e, aqui, a UFRGS é a nossa federal, uma instituição considerada para os melhores dos melhores, e como eu poderia estar nesta lista? Jamais. Mas, eu tive uma grande incentivadora: minha mãe. Já no Ensino Médio, quando se falava sobre o futuro, eu imaginava continuar estudando após a conclusão, mas foi a minha mãe que sonhou, ela me inscreveu num Cursinho Pré-Vestibular popular do Governo do RS, na época, e eu fui aceita e pude cursar os últimos seis meses do terceiro ano com professores focados no vestibular da UFRGS. Como eu disse, não acreditava, mas fazia tudo que estava ao meu alcance pra me sair bem. Até uma frase escrevi na minha parede pra me motivar: “Luana, tu és foda”. Mas eu continuava a duvidar.
Essa sensação de incapacidade intelectual é um sintoma do quão nocivo o racismo é para pessoas negras. Acabamos por subestimar os lugares que podemos estar e não nos enxergarmos como seres pensantes, que podem ter e ser atuantes em espaços como a Universidade. Desta forma, prejudica a ascensão social e a formação de futuros jovens negros e negras com a perspectiva de cursarem o ensino superior. Percebe o quanto este pensamento gera um ciclo de inércia educacional?
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O direito de ir à Universidade
Eu acredito que seja uma sensação comum ter medo e receio de uma prova. O vestibular é um dos momentos mais interessantes pra analisar, é um misto de “estou saindo da escola e agora sou adulto” com “caramba, e se eu não passar na prova o que vai acontecer”. Mas, percebo a diferença de oportunidades presentes na escolha.
Jovens negros não tem a oportunidade da escolha, em sua maioria. Eles são assassinados pelo fato de serem negros. Jovens negros não chegam a conluir o ensino médio. Jovens negros precisam trabalhar, estudar, cuidar dos irmãos, e ainda conviver com o racismo que habita nas insituições de ensino. Como pensar em vestibular? Como pensar em futuro? Eu sou exceção. Eu tive o direito da escolha, mas eu quero ser regra, luto pra ser regra.
O Vestibular
Eu me inscrevi no concurso com a plena certeza de que eu não passaria. Essa certeza me fez duvidar que eu poderia terminar os dias do vestibular, eu lembro de achar a prova muito difícil no primeiro dia e avisar a minha mãe que eu não iria passar, e por isso, não via sentido em voltar. Minha mãe, diga-se de passagem, maravilhosa, disse que eu voltaria e passaria, ela estava certa.
O que me marcou no vestibular foi um alma iluminada que cruzou no meu caminho, o porteiro de um prédio próximo ao colégio que fiz a prova. Quando eu iria passar em sua frente, ele me olhou e disse: “levanta a cabeça menina, você vai conseguir. A gente [pessoas negras] não teve a oportunidade de entrar, agora, vocês [jovens negros] têm”, conversamos e ele me desejou boa sorte. Quando a gente anda, não estamos sozinhos, carregamos uma geração de antepassados que não tiveram direito à nada.
Passei. Minha ficha demorou muito pra cair, porque eu não conseguia acreditar no feito que eu havia conquistado. Hoje, eu paro pra analisar e percebo que tenha demorado alguns semestres pra realmente acreditar que eu conseguiria fazer qualquer coisa que eu quisesse, porque era capaz, e isso fez com que nos primeiros semestres, eu não tivesse ido tão bem. Mas, nunca tirei C, e hoje sei, que uma nota não julga quem tu és.
A entrada na Universidade e o peso das cotas
“Caraca, eu entrei na UFRGS”. Lembro de repetir esta frase muitas vezes pra ver se eu finalmente acreditava. Eu ingressei via ações afirmativas, utilizando as cotas raciais, e como comentei no meu post do instagram, somos seres contraditórios, eu não achava o meu método de ingresso justo, porque nos fazem acreditar que não merecemos, nos mostram que o certo é valorizarmos os méritos das pessoas, “se você estudar muito, você vai conseguir chegar lá”, quando na realidade, sabemos que a corrida pras pessoas negras já é desigual. Porém, naquela época, eu ainda acreditava neste discurso.
Ao entrar na Universidade, entende-se que ser uma pessoa cotista negra é um selo simbólico que te acompanha, mesmo que você não tenha entrado pelas cotas. Raça chega antes e se, uma pessoa negra, está dentro de uma universidade pública, federal e de qualidade, como a UFRGS, somente pode ter sido possível com o sistema de cotas. “Um empurruãozinho, né”, porque as pessoas não acreditam na capacidade intelectual de uma pessoa negra. E, se torna um ciclo vicioso reproduzido e retroalimentado pelo racismo, não conseguimos ver a grandiosidade dos nossos feitos.
Das faculdades, a minha era uma das menos piores. Por ser uma faculdade focada em Comunicação, tende-se a “achar” que há menos preconceito, menos tabu e facilidade de aceitação das pessoas negras. Mas, a verdade é que na prática, vivemos numa sistema racista e reproduzimos racismo em todos os ambientes. Vi amigos ficarem doentes, saúde mental mesmo, por não se sentirem bem lá, pela dificuldade de rompermos barreiras e sermos escutados. Eu lembro que não falava muitos nas aulas, porque não achava que a minha opinião importava. Afinal, pessoas negras são silenciadas, e novamente, há uma ação simbólica de demonstrar que você está APENAS ocupando um lugar que não te pertence. Eu lembro que meu ex-namorado estuvada nas RIs, e se eu achava a FABICO complicada, você não vai querer entender o que é estar num curso EXTREMAMENTE elitizado sendo uma pessoa negra.
É complicado tentar explicar a quantidade de situações que acontecem dentro de uma universidade com uma pessoa negra. É doloroso, sabe. Mas, pra cada pessoa acontece de uma forma diferente. Mesmo com todos os problemas, a minha turma da UFRGS 2012/2 foi uma das maiores turmas, na época, de cotistas entrantes na Fabico. E, levo estes amigos até hoje.
Ah! Antes que eu esqueça: Ser /2 também já foi motivo de deboche. Mesmo sendo uma baita conquista tu entrar numa universidade, passar para o segundo semestre era motivo de humilhação, como se as pessoas não tivessem feito a mesma prova. O que importava mesmo era o ranking mostrava quem tu era. Hoje, a UFRGS já mudou este sistema, justamente para evitar este tipo de situação.
Cotas raciais: Por que são uma ação antirracista?
As cotas raciais foram implementadas COM MUITA LUTA do movimento negro para diminuir a diferença social, econômica e educacional entre pessoas de diferentes etnias. O que acontece é que as pessoas acham essa política racista, pois consideram que faz uma distinção entre grupos, quando na verdade, sabemos que o objetivo é o oposto disto, é incluir pessoas negras e indígenas num sistema desigual.
Raça chega antes. Se considerarmos que a luta antirracista é pautada em ações contra o racismo, e o acesso de pessoas negras à educação, tem como um dos fatores o racismo institucional e educacional, então, as cotas são um mecanismo essencial para manutenção de pessoas negras concluindo o ensino superior e modificando a estrutura racista que dita quais são os lugares dos negros no Brasil. As cotas raciais são uma política de reparação histórica e a sociedade brasileira deve isto aos homens e mulheres negras que foram escravizados e animalizados pela falsa crença de uma supremacia racial, fundamentada numa diferença genética e, por sua vez, social entre brancos e negros. As cotas são fonte de esperança para uma juventude que é massacrada pela violência, e de uma população, que sofre com o genocídio dos seus semelhantes desde a escravização. As cotas não são motivo de demérito, ao contrário, são a luz da esperança e a possibilidade de um futuro melhor, no qual será provido pela equidade.
Nos deixem sonhar. Nos deixem ter a liberdade de estudar. Nos deixem.
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