Coisa mais linda: Adélia e a subserviência da mulher negra

Luana Daltro
6 min readApr 2, 2019

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Fonte: Superela / Reprodução

Aviso:

  1. Esse texto contém spoilers.
  2. Antes de mais nada, preciso dizer, jamais julgarei uma mulher negra pelos papéis que ela desempenha, pois, sabemos que até pouco tempo, eram brancos que os faziam. Então, mais do que sororidade, é preciso ter dororidade.

A mais nova série brasileira da Netflix “Coisa mais Linda” traz um enredo sobre o que é ser mulher na década de 50 no Brasil, destacando a vida e as problemáticas de quatro personagens mulheres cis*. Até aqui interessante, tendo em vista que estamos discutindo e problematizando, atualmente, o ser mulher, né? É um tema que dialoga comigo e me interessa. Porém, estava em dúvidas se assistiria por alguns motivos:

  • Como eles abordariam o gênero mulher na série? Isto é, temos diversas formas para falar sobre mulher, será que eles vão sair fora do padrão de beleza? Será que teremos uma mulher trans? Fiquei curiosa.
  • Vi um trecho de um episódio, no qual acontecia uma discussão entre as personagens das atrizes, Maria Casadevall e da Pathy DeJesus sobre as diferenças entre mulheres brancas e negras. Me incomodou, porque parecia uma discurso conhecido e repetido. Me questionei: Será que a partir disso teríamos uma nova perspectiva?
  • As principais personagens seguiam padrões de beleza — mulheres magras, em suma, brancas e com cabelo liso. Me incomodou.

Então, assisti.

De modo geral, a série aborda temas importantes que envolvem a mulher — violência doméstica, direitos, feminismo, aborto, trabalho, família e filhos, e etc. São diferentes temas em debate, e não tiro a importância da pauta, mas foram tratados de modo superficial. E, por isso, a série não me surpreendeu, seguiu o padrão. Não foi disruptiva, e talvez, não fosse esse o objetivo mesmo. Porém, a partir do momento que se propuseram em falar sobre o ser mulher, esperava uma maior heterogeneidade nesta discussão.

Das quatro personagens principais, somente uma era de classe baixa. Logo, os discursos e as temáticas se concentraram na classe média brasileira, o que não corresponde, ao meu ver, a realidade do Brasil. Embora saibamos que a perspectiva de ser mulher e as questões que a envolvem vão permear qualquer classe, raça, gênero e sexualidade, mas faltou uma conexão entre realidades distintas.

Adélia, mulher negra e muito mais

Enquanto mulher negra, automaticamente, observei Adélia, a personagem negra em destaque na série. Me identifiquei com ela, suas dores e anseios. Mas, principalmente, percebi que me senti conectada com ela, pois Adélia exercia um papel comum entre os negros e é sobre isso, que eu quero falar.

Mas, quem é Adélia?

A Adélia, interpretada por Pathy DeJesus, é uma mulher negra, que mora no morro, tem uma filha de oitos anos e trabalha como empregada doméstica. Ela se apresenta como mãe solteira mas, logo no início da série, o pai de sua filha — Conceição, Ícaro Silva, retorna pra casa.

De fato, Adélia é o estereótipo da mulher negra na época, e seus comportamentos estavam relacionados à esfera social a qual habitava, porém, trazia consigo uma característica de passividade, um papel de subserviência às pessoas ao seu redor.

Não julgo Adélia. Julgo a estrutura do sistema racista que fragmenta a identidade negra e faz com que negros/as não consigam acreditar na sua capacidade e no seu poder de transformar realidades.

E como seria diferente?

Ao longo da temporada, são apresentados fragmentos da história de Adélia. Em suma, ela começou a trabalhar aos oitos anos como empregada, não foi alfabetizada, porém sonhava com dias melhores — e a crença dela na humanidade se conecta comigo. Não vi Adélia contrariando alguém (até determinado momento da série), pois sua voz foi silenciada pela imposição racial, uma vez que negros/as sabiam ou deveriam aprender qual era o seu lugar no mundo. Adélia não desobedecia, seguia ordens, não saia fora do script, entendeu, rapidamente, quem tem poder, e não são os negros/as.

Então, Adélia se envolve com o filho do patrão e engravida. A família dele sabendo do envolvimento com uma “negrinha” resolve mandá-lo para Paris — ora, ora vejam só. Adélia tem a filha e mente pro namorado sobre a paternidade. Vive sua vida para dar sustento à Conceição e a irmã mais nova — situação comum nos lares de família negra, todos trabalham para dar sustento à família e os que ainda não trabalham cuidam dos irmãos e/ou filhos dos parentes, o que acontecia na família de Adélia.

Adélia sonhava com direitos. Ela era uma mulher forte, batalhadora, aguentava o racismo e a desigualdade social imposta todos os dias. Mas, vocês entendem que a prioridade da Adélia não poderia ser discutir sobre igualdade entre homens e mulheres, pois o/a negro/a no Brasil não tinha direitos iguais? Então, não há luta enquanto o antirracismo não for um ativismo das pessoas.

Mas, então, tudo muda quando ela encontra Casadevall.

A luta da mulher branca e da mulher negra.

Nós não somos iguais.

Ao longo da série se torna cada vez mais nítida a diferença entre ser uma mulher branca, de classe média, com filho e desquitada em relação à uma mulher negra, de classe baixa, com filho e sem marido.

São lutas diferentes. Malu buscava mostrar ao mundo que era capaz, mesmo tendo sido abandonada e traída pelo marido, buscava independência, ser livre e viver a sua vida, sem ser questionada se teria capacidade por ser mulher ou rica. Adélia sonhava com direitos iguais, em mudar de realidade, transformar a vida da filha, aprender a ler e a escrever, ser valorizada como pessoa e não discriminada pela cor da sua pele.

Os caminhos se cruzam e se tornam sócias de um Clube, porém, enquanto Malu consegue mudar a sua vida se empoderando enquanto mulher e ascendendo financeiramente. Adélia continua vivendo do mesmo jeito, comandando praticamente sozinha o clube com a “parceira”, pois é nítido em diversos momentos que Adélia parece a empregada de Malu, ao invés de sócia.

A fórmula é simples: não existe igualdade de gênero enquanto não discutirmos a incapacidade de avanço da mulher negra. Não há luta que se sustente sem equidade, por isso, existe uma distinção entre o feminismo branco e o negro, pois precisamos ter voz nas pautas assim como as mulheres brancas.

A verdade é que Adélia exerce um papel de devoção à Malu, pois não há como não agradecer a moça que a olhou diferente, né? “Não me viu como a empregada, a servente”. Porém, na primeira oportunidade de se fazer de vítima, Malu fez questão de explicar pra Adélia as relações de poder: eu mando, tu obedeces.

A passividade de Adélia, após este momento, se modifica. Porém, não surte o efeito esperado do “empoderamento da mulher”, porque ainda existe uma imposição de relações de poder latente relacionada à raça. Não é à toa que ao final da temporada Adélia diz pra Malu que nada estaria acontecendo se não fosse por ela.

A verdade é que Adélia, assim como, muitas mulheres negras vivem numa espiral de silenciamento e questionam-se sobre seu poder e força para mudar o sistema. Me identifico com Adélia, pois eu já fui como ela, e em muitos momentos, me sinto presa ao sistema e acreditando neste não lugar. Por isso, façamos uma reflexão sobre atitudes que inspiram mudanças estruturais e não superficiais em nosso dia a dia.

* Uma pessoa cis é uma pessoa na qual o sexo designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de sexo + gênero designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de gênero, estão ‘alinhados’ ou ‘deste mesmo lado’ — o prefixo cis em latim significa “deste lado” (e não do outro), uma pessoa cis pode ser tanto cissexual e cisgênera mas nem sempre, porém em geral ambos.”

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Luana Daltro
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Written by Luana Daltro

Relações-Públicas e Entusiasta da negritude. ig: @ludaltro_